quarta-feira, agosto 16, 2006

MEMÓRIA ANALÓGICA

Torres e seu bonezinho: descobrindo talentos.

Tenho poucas e boas histórias com Antonio Torres, meu vizinho nos tempos de Ipanema. Ele morava na Souza Lima e eu na Antonio Parreiras: quatro quarteirões nos separavam, mas o bar Jangadeiros, na Praça General Osório, nos aproximava. Certo dia, tipo 1992, entre um chope e outro, o autor de “Um Táxi para Viena d´Áustria” desafiou: “Você tem alguma novidade, coisa realmente interessante para meus leitores?” (Ele escrevia uma coluna aos sábados no Jornal do Brasil). Eu não pensei muito:
“Olha, esta semana fui conhecer a produção poética da Dóris Giesse, minha colega na televisão, que armazena uma impressionante safra de poemas inéditos escritos desde os 18 anos. Separei uns 40 para formatar um livro de estréia da loura.” O Torres, aparentemente, duvidou de alguma coisa:
“Mas, bons mesmo? Pode me mostrar algum?” Eu tinha memorizado apenas dois ou três, aqueles que me pareceram mais impressionantes, e mandei um deles:

Fêmea?
Sei é que sou tão macho
que sorvo o pênis mais próximo
Melhor ainda se for amado
só para ter de volta
o que por uma ira genética
me fora mutilado

O meu recital improvisado provocou um visível impacto no Torres, que ficou olhando para o ar imaginando o rosto andrógino da moça. E quis saber:
“Os outros são da mesma qualidade?”
“Melhores”, respondi. “Quer ver?”
E mandei dois não-eróticos que provocaram o mesmo efeito – pelo repertório e agilidade. O Torres ainda murmurou: “Que coisa impressionante”. No final de semana o assunto estava nas páginas do JB com o título: “Dóris para leitores”, onde ele informava que a descoberta literária deveria ser transformada em livro, etc.
Dias depois, quando nos reencontramos na mesa do Jangadeiros, ele estava visivelmente acabrunhado pelo excesso de críticas e “quase-ofensas” que recebera dos leitores (amigos) por dar crédito a uma, digamos, vedete. Era esse o tratamento que a Dóris mereceu: vedete.
Agora, 14 anos depois, nos encontramos no Café Antonio Torres, no mezanino da livraria Letras & Expressões, no Leblon, para falar de amenidades e tomar cerveja. O café, como já deu pra perceber, é uma homenagem da livraria ao meu amigo, recentemente consagrado na França, onde suas obras ganharam tradução e grande espaço na mídia. No bate-papo, lembramos do assunto Dóris e, numa conferência rápida, pudemos avaliar que, passados tantos anos, ambos mantivemos os valores daquela descoberta. E, como num lance de dados, o dado mais impressionante foi a constatação de que – por motivos intangíveis e/ou preconceituosos – o livro da Dóris continua inédito.
Toninho Vaz